24 de março de 2013

O menino e as pérolas da estrada


Eu via um menino... um menino e uma estrada longa. Ele vestia uma bermuda surrada azul e uma camiseta branca com uns dois ou três furos que retratavam que ela não era muito nova. A sola dos pés tocava a terra da estrada.

O menino e a estrada... e ele seguia por ela.

Várias coisas existiam nesse caminho. Porém ele seguia sem notá-las. Havia algum tempo que nada do que via lhe fazia olhar com mais intensidade, vontade e apreço.

Num dado momento, totalmente inesperado, enquanto seguia seu caminho, avistou pérolas. Sim, pérolas... e elas brilhavam muito quando ele as vias de longe, sob a luz do sol que ardia fortemente. Eram pequenas. Pequeninas e frágeis pérolas...
Então ele acelerou seus passos na ânsia irrevogável de chegar mais perto, de tocá-las, de tê-las... e seus olhos brilhavam tanto quanto elas. Um brilho que a muito tempo não se fazia presente naqueles olhos profundos, que carregavam medo e receios de tempos passados. Mas aquelas pérolas que avistara ao longe estavam sendo capazes de trazer-lhes luz.

Ia se aproximando, chegando perto... o coração batia a um ritmo desconhecido, um ritmo forte, descompassado, que gritava coisas loucas e lhe bombeava o sangue de uma maneira salutar, que lhe fazia sentir coisas desconhecidas ou adormecidas em uma memória afetiva ainda marcada por coisas não tão boas.

Mas de repente esse brilho começava a diminuir, passava a ser um tanto quanto fosco, ainda que de uma maneira gradual... e então esse menino diminuía seus passos. Ele tinha medo! Porque elas estavam tornando-se menos ofuscantes? o que estaria acontecendo?
Aquele ritmo descompassado do seu coração que antes era de esperança e alegria vai se tornando um ritmo de agonia. Mas ele não podia parar, ele queria descobri o que estava acontecendo com aquelas dádivas que tinha avistado...

Ele novamente acelera seus passos... e quanto mais perto ele chega, menos brilho elas possuíam, até chegar a um ponto em que começam a desfigurar-se...

Não são mais tão redondinhas e nem aparentam algo valioso. Ainda que lhes existisse um brilho não era o mesmo que ele avistara antes. Não é “o” brilho... é só um brilho, um brilho qualquer, de um cascalho, talvez.

Ele perde, então, a força que lhe fez caminhar ansiosamente ate ali... Senta na beira daquele caminho, deita a cabeça sobre os joelhos, fecha os olhos e tenta sentir alguma coisa. Sim, ele tenta sentir alguma coisa, pois lhe parece que todos os sentidos foram roubados por tamanha desilusão.

Primeiro procura rever as forças físicas, para que possa levantar a cabeça, abrir seus olhos já molhados e marcados pela decepção, e encarar aquilo... Aquilo que era a realidade.
Infelizmente eram apenas cascalhos...
Cascalhos que estavam ali por todo o intemperismo que aquele caminho sofreu... eles não tinham motivos especiais, apenas cumpriam sua missão de cascalhos.

Ele então pega alguns deles na mão, quer ter certeza de que são mesmo pedras sem valor. Ou pelo menos aquele valor que ele registrara de longe... e eram...

Silêncio... Havia outra coisa qualquer para aquele momento?
Dúvidas... Consequentemente elas viriam.

Porque será que ele imaginou serem pérolas aqueles inocentes cascalhos distribuídos ao longo daquele caminho? Quais motivos aquele simples menino que trajava bermuda, camiseta velha e tinha os pés descalços tinha para enxergar tanto valor em coisas simples, e porque essa mesma imaginação que existia ao longe não se fez presente perto?

Talvez lhe faltasse algo... não perto, mas longe. Algo sublime, algo ímpar, fundamental para enxergar a realidade, mesmo que distante ou mesmo que lhe pareça melhor confundir cascalhos com pérolas. 

Cascalhos não são perolas! Disso ele sabia!

Mas... era justo ele se privar de viver aquele momento maravilhoso que foram seus poucos passos em direção às “perolas” que viu ao longe?

Não... não era.

O sangue humano que lhe corria nas veias não permitiu tal proeza. Eram pérolas... ao menos pra ele e naquele momento, e ninguém pode negar isso...

Beije a flor, mas não se guarde da chuva.  Gire o sol, mas não se guarde dele. Não queira amor-perfeito, não guarde-roupas novas. Viva! Talvez essa seja a palavra-chave, pra essa bomba-relógio que é a vida. Bem-te-vi, bem-me-quer! Louva-a-deus, João-ninguém. Grite nos auto-falantes. Jogue fora o baixo-astral, sem cara de segunda-feira.  Água-viva, água-benta, água-régia. Não ouça as más-línguas, cabeça-dura. No fundo a vida é doce, feito marrom-glacê, pão-de-ló, pé-de-moleque. Bel-prazeres. Se a tristeza chegar, um padre-nosso e três ave-marias.

Traços


O teu rosto no retrato é mais real do que retratam os teus
traços. Traços que também estão no retrato, mas face a
face são móveis, ali estão estáticos.

Traços no retrato que são largados e esquecidos no fundo
da gaveta, e que as traças comem.

Traças comem traços, assim como me comiam teus
braços, naquele laço, naquele embaraço.

Profundo amasso, profundo fracasso...

Fumar, fumar, fumar cigarros aos maços, envolver-me na
fumaça ao som de um tango, bebendo um vinho
vagabundo, que não vale um mango.

Me sinto tão livre de você agora; tão livre quanto um
pássaro na gaiola.

Livre pra viajar e me afundar nessa saudade que me
prende e me rende ao prazer de sentir teu suor escorrer no
meu corpo, fruto de quando meus traços e teus traços se
juntam em mals tratos.

Realizamos o ato.

Sofre coração... sofre mais uma vez. Você merece ter mais
esse traço de fraqueza; fraqueza da carne do miocárdio.

1 de março de 2013

Mundo Grande


Não, meu coração não é maior que o mundo.
É muito menor.
Nele não cabem nem as minhas dores.
Por isso gosto tanto de me contar.
Por isso me dispo,
por isso me grito,
por isso freqüento os jornais, me exponho cruamente nas livrarias:
preciso de todos.
Sim, meu coração é muito pequeno.
Só agora vejo que nele não cabem os homens.
Os homens estão cá fora, estão na rua.
A rua é enorme. Maior, muito maior do que eu esperava.
Mas também a rua não cabe todos os homens.
A rua é menor que o mundo.
O mundo é grande.
Tu sabes como é grande o mundo.
Conheces os navios que levam petróleo e livros, carne e algodão.
Viste as diferentes cores dos homens,
as diferentes dores dos homens,
sabes como é difícil sofrer tudo isso, amontoar tudo isso
num só peito de homem… sem que ele estale.
Fecha os olhos e esquece.
Escuta a água nos vidros,
tão calma, não anuncia nada.
Entretanto escorre nas mãos,
tão calma! Vai inundando tudo…
Renascerão as cidades submersas?
Os homens submersos – voltarão?
Meu coração não sabe.
Estúpido, ridículo e frágil é meu coração.
Só agora descubro
como é triste ignorar certas coisas.
(Na solidão de indivíduo
desaprendi a linguagem
com que homens se comunicam.)
Outrora escutei os anjos,
as sonatas, os poemas, as confissões patéticas.
Nunca escutei voz de gente.
Em verdade sou muito pobre.
Outrora viajei
países imaginários, fáceis de habitar,
ilhas sem problemas, não obstante exaustivas e convocando ao suicídio.
Meus amigos foram às ilhas.
Ilhas perdem o homem.
Entretanto alguns se salvaram e
trouxeram a notícia
de que o mundo, o grande mundo está crescendo todos os dias,
entre o fogo e o amor.
Então, meu coração também pode crescer.
Entre o amor e o fogo,
entre a vida e o fogo,
meu coração cresce dez metros e explode.
– Ó vida futura! Nós te criaremos.
(Carlos Drummond de Andrade)